Rotas 2025

Rotas 2025

27 ago 25 - 31 ago 25

Desde a sua origem, o Clube de Colecionadores do MAM São Paulo promove uma característica fundamental da arte contemporânea: a multidisciplinaridade atrelada a pesquisas conceituais, técnicas e histórico-políticas. Desde antes de 2022, quando o Clube de Gravura e o de Fotografia foram unificados e o Clube do MAM passou a realizar edições sem definir um escopo técnico específico, as edições do Clube já resultavam de proposições artísticas que não apenas incidem sobre a especificidade dos suportes, como também se entrelaçam com problemas históricos e contemporâneos da arte e da cultura brasileira. Tais traços estão presentes nas obras da edição 2025/2026, que apresentamos na Rotas junto de outras edições realizadas pelo Clube nas últimas décadas. Partindo das propostas conceituais, formais e técnicas presentes nas obras da nova edição, foram selecionadas seis edições anteriores que estabelecem diálogos por vias de aproximação ou de contraste com essas abordagens.

O trabalho têxtil de Regina Gomide Graz foi retomado e recriado pelo Movimento Transbordar através do mesmo procedimento técnico empregado pela artista, mas sem o caráter funcional do biombo original. Trata-se de um recorte feito a partir do original, que enquadra o olhar do espectador sobre a técnica do bordado, da construção material da imagem, enfatizando, ainda, os traços e as cores que tornam a composição tão complexa e única, e a fazem oscilar entre a representação e a abstração. As edições de Fernanda Gomes e Arthur Luiz Piza também elaboram construções cromáticas e formais e produzem diferentes possibilidades para a imagem e a linguagem. A obra de Fernanda Gomes se ordena simetricamente sobre um pedaço quadrado de linho com duas finas linhas que dividem a superfície em quadrantes. As linhas divisórias podem remeter a vincos marcados pelas dobras em um tecido, ou aos eixos x e y de uma equação. A sutil diferença entre os brancos de cada um dos lados da obra se constitui de forma quase indecifrável, especialmente considerando a técnica empregada — a serigrafia, que não é normalmente associada a uma impressão leve, quase imperceptível. O uso do linho como suporte aprofunda a fragilidade material dessa percepção e introduz naturalidade à sua segmentação matemática. Já na gravura de Arthur Luiz Piza, a imagem é construída “do zero” e o suporte interessa apenas como superfície para a impressão de incisões feitas em matrizes de metal. Em certa medida, a obra retoma pesquisas pictóricas da arte moderna em torno da relação entre forma e fundo, luz e cor, introduzindo, ainda, o problema da reprodutibilidade técnica — mas não como subversão, e sim renovação das linguagens plásticas. A subversão presente na imagem abstrata realizada por Piza está no uso de um vocabulário geométrico de forma expressivamente lírica.

A proposta conceitual da edição assinada por Waltercio Caldas atravessa o conceito do ready-made e o campo da fenomenologia. Como é comum à produção desse artista, a obra que realiza para o Clube do MAM desvela, ao mesmo tempo, processos mentais e ópticos-sensoriais que não se opõem, nem se complementam, mas convivem, tal como a razão e a sensação coabitam a experiência humana. Se a imagem do perfume reproduzido na obra contém o dado olfativo — que, real ou não, é sempre invisível —, as suas abas de fixação transformam a imagem em um objeto — que poderia, ficcionalmente, ser vestido. As edições realizadas por Cinthia Marcelle e Matheus Rocha Pitta também atravessam conceitualmente relações entre a percepção, a imagem e as linguagens visuais. A litogravura impressa por Cinthia Marcelle reproduz uma fotografia surpreendente, na qual a objetiva da câmera se colocou diante da superfície reflexiva de um espelho, mas permaneceu ausente da imagem.

Os vidros estilhaçados do espelho impossibilitaram a nitidez do seu reflexo, tornando o objeto inútil em sua função primordial, mas, simultaneamente, útil para uma metáfora fotográfica que insere no cerne da imagem as possibilidades imprevistas do extra-quadro. A edição proposta por Matheus Rocha Pitta deriva de uma ação realizada na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, em que ele realizou uma espécie de escambo com os moradores: eles davam ao artista pedras para a realização de uma escultura e, em troca, recebiam litros de leite. Na obra realizada para o Clube do MAM, a lógica compositiva é análoga à imagem publicitária, com o “produto” e seu “slogan” sendo representados literal e figurativamente. Ainda, o uso da caixa de papelão como suporte introduz um dado de precariedade na obra que nos lembra da perversidade da expressão popular que lhe dá nome: tirar leite de pedra.

A gravura produzida por Rosana Paulino para a nova edição do Clube de Colecionadores se insere em uma longa linha de pesquisa e produção da artista que explora relações entre a mitologia e o feminino, especialmente do ponto de vista da mulher afro-brasileira. Nessa obra, Paulino faz convergir força e delicadeza em uma figura mitológica fictícia, que realiza uma representação irredutível do feminino como traço de uma natureza onde elementos aparentemente contrários se encontram e se equilibram. Nas edições produzidas por Iole de Freitas e Gabriela Albergaria, questões relacionadas ao feminino e à natureza também estão em jogo. No tríptico de Iole de Freitas, fotografias e texto aparecem numa sequência quase cinematográfica que produz sentidos que se informam mutuamente, como em um circuito fechado. Os reflexos de um corpo que aparece parcialmente nas fotografias transmitem o mistério do que não se revela totalmente, mas carregam também as cargas morais e culturais da sensualidade feminina. Ela, porém, não é tratada de forma negativa — ao contrário, é reafirmada em sua forma mais empoderadora e autônoma, como propriedade da mulher. O díptico de Gabriela Albergaria contribui para a valorização da natureza frente aos processos de devastação e perda que a humanidade promove há séculos. A obra retoma as formas de registro e catalogação de espécies vegetais desempenhadas por missões científicas e artísticas no século XVIII, que, anteriores à invenção da câmera fotográfica, utilizavam do desenho e da reprodução gráfica para representar as espécies, suprimindo a subjetividade desses meios à serviço de uma vontade de objetivação hegemônica. Na edição realizada para o Clube do MAM, Albergaria assume, justamente, a subjetividade do desenho ao lado da objetividade do registro fotográfico, que, ao invés de se oporem ou contrastarem, se complementam ao ressaltar diferentes aspectos das formas, texturas e volumes vegetais.

Na Rotas de 2025, o MAM São Paulo demonstra que o seu Clube de Colecionadores não apenas continua em plena atividade, apesar do museu estar atualmente fora de sua sede, como também prossegue na consolidação da arte contemporânea brasileira através de propostas únicas e polivalentes.

 

Gabriela Gotoda
Curadoria MAM São Paulo

 

artistas

 Arthur Luiz Piza (São Paulo, São Paulo, Brasil, 1928 – Paris, França, 2017) | Cinthia Marcelle (Belo Horizonte, MG, Brasil, 1974) | Fernanda Gomes (Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1960)| Gabriela Albergaria (Vale de Cambra, Portugal, 1965) | Iole de Freitas (Belo Horizonte, MG, Brasil Brazil, 1945) | Matheus Rocha Pitta (Tiradentes, MG, Brasil Brazil, 1980) | Regina Gomide Graz Graz (Itapetininga, SP, Brasil, 1897 – São Paulo, SP, Brasil,1973) | Rosana Paulino (São Paulo, SP, Brasil, 1967) | Waltercio Caldas (Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1946) 

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